Travessão

icanthelpbutwonder
1 min readOct 10, 2020

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Ele costumava dizer o quanto eu escrevo bem. Dizia que ensinei a arte do travessão a ele. Seu interesse pelo transgressor me encantou. O que é irônico, porque não havia nada de tradicionalmente encantador nos conteúdos que ele consumia. Seus olhos estavam atentos para o chamado pejorativamente de “submundo”. Dizia sempre que não acreditava na moralidade das coisas e vez em quando me acusava de moralista. Percebo que de alguma forma e em alguma medida buscava me “deseducar” do que ainda habita em mim de “boa moça”. Acredito que por um tempo eu queria que ele desempenhasse esse papel e era avidamente atraída por seus atos de não normatividade. De alguma forma permiti que nosso breve e intenso relacionamento fosse um teste de até onde eu era capaz de ir. O quão longe do que julgo “normal” eu conseguia caminhar e permanecer. Por vezes senti que ia até territórios que nunca havia caminhado, parava por alguns segundos antes de atravessar sua fronteira me perguntando se eu de fato deveria ou desejaria atravessar. Por vezes o não deveria ganhava. De outras o desejo vencia. Sei lá. Acho que foi tudo uma experimentação. Um novo cenário. Um novo personagem. Uma nova trilha sonora. Diferentes diálogos. O quão “normal” eu voltei a ser agora que não nos atravessamos mais? Em grande parte sinto alívio por não cruzar mais aqueles longos corredores de um certo prédio da Gustavo Sampaio. Por outro lado, desejo que uma parte minha não exista apenas naquele quarto de fundos.

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