Cativeiro
Há uma parte de mim que tem sede pela vida além do mundano. Vez em quando ela assume o controle e eu nem percebo. Começa chegando devagar e quando noto já tem uma passagem comprada para encontrar um quase desconhecido em outro país, uma mensagem enviada para aquele que havia prometido nunca mais dirigir a palavra, um sim a um convite inusitado. Nem sempre me relaciono bem com essa parte que me habita. Ela me faz vulnerável, faz com que eu me sujeite à possibilidade de rejeição, faz com que eu acorde com ressacas cheias de culpa. Mas é ela que faz com que eu olhe pra trás e reconheça o tanto de caminho interessante que já percorri.
Quando ela decide dizer sim, passo dias mágicos na Itália na compainha de um estranho que se revelou um tanto especial. Quando ela diz que prefere quebrar a cara a não ter vivido, me faz percorrer ruas iluminadas por estrelas numa noite de verão e fazer amizades no caminho. Quando ela se convence que pode, me lança numa empreitada para viver de meus talentos. Quando ela percebe que precisa parar de se diminuir para caber, consigo encontrar um lar possível do jeito que sempre sonhei.
Não é fácil saber a hora de deixá-la asssumir. Dá bastante trabalho escutá-la. A outra parte, na maior parte das vezes, só quer fazer o que é linearmente seguro. Mas quando passo muito tempo tentando calar sua voz, ela chega quase incontrolável. Sedenta e cansada de cumprir apenas tarefas. Digo “sossega”, mas ela já está inquieta. Ao longo dos anos compreendi que ela precisa sair de vez em quando. Quanto mais cativa, mais faminta. E aí, quando solta, o resultado pode não ser tão recompensador.